Ambientes de trabalho diversos garantem maior inovação e sustentabilidade de negócio para as empresas, mas será que elas estão preparadas para receber pessoas LGBTQIAPN+?
Proporcionar o acesso pleno, saudável e inclusivo para pessoas LGBTQIAPN+, ou seja, lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, queer, interssexo, agênero, panssexuais e pessoas não-binárias, além de outras identificações, ao mercado de trabalho ainda é uma tarefa a ser percorrida nas empresas. Segundo a pesquisa Orgulho no Trabalho realizada no ano passado pelo LinkedIn, 21% das pessoas que fazem parte da sigla não se sentem confortáveis para partilhar a orientação sexual ou identidade de gênero no ambiente de trabalho. Além disso, 47% dos entrevistados afirmaram que as empresas em que trabalham não têm práticas de promoção da igualdade ou que eles não sabem da existência dessas ações.
Ainda segundo a mesma pesquisa, 43% das pessoas alegam ter sofrido algum tipo de discriminação, principalmente velada, seja por parte de colegas ou pela liderança. “O mercado de trabalho é formado por pessoas e cada indivíduo possui valores pessoais e ideais. Entretanto, muitas vezes essas crenças se tornam limitantes e estão recheadas de estereótipos, o que impacta todo o percurso das pessoas que fazem parte de grupos sub representados no ambiente corporativo, desde o processo seletivo até oportunidades de crescimento de carreira”, afirma Anabel Carvalho Martins Filardi, que trabalha no setor de Empregabilidade da Escola da Nuvem.
Anabel atua no mercado de Tecnologia, pois a Escola da Nuvem é uma organização sem fins lucrativos que visa garantir a educação e a empregabilidade de pessoas em situação de vulnerabilidade social para que elas consigam ingressar no setor de cloud computing. Segundo a especialista, essa realidade geral não é diferente no setor tech, já que ele é “predominantemente masculino, branco e heteronormativo”. “O primeiro desafio [que enfrentamos], que acaba gerando todos os demais, são os vieses inconscientes. A partir deles surgem os primeiros julgamentos num processo seletivo e a falta de representatividade, [que culminam] nas barreiras enfrentadas por pessoas diversas para alcançarem ascensão profissional. [Isso também pode ser visto na] desigualdade salarial e no dia a dia com as micro agressões, que surgem em comentários inadequados e piadas ofensivas”, explica a especialista.
Para Anabel, esse desafio é o maior de todos e o mais difícil de ser combatido, pois é “algo invisível. E por não ser consciente para as pessoas, isso dificulta o processo de mudança. É realmente difícil de se trazer [os vieses] para o nível de consciência e então mudar percepções e comportamentos, pois muitos deles são tão enraizados em nossa sociedade e rotina que são naturalizados. Para mudar a realidade que vivemos hoje, é essencial que cada pessoa crie consciência de seu lugar de fala e privilégios”, opina.
A realidade das pessoas trans
Miguel é aluno e está se formando na Escola da Nuvem. Depois dessa etapa, ele passará pela empregabilidade e receberá mentorias, suporte e apoio para ingressar na área de Tecnologia e trabalhar com nuvem. Hoje, ele atua com digitalização de documentos, mas também já esteve no setor de hotelaria. Ao longo de sua carreira, sofreu transfobia. Tinha um chefe que constantemente o deixava de lado e não lhe dirigia a palavra, além de, em uma situação, pedir para o RH da empresa exigir que Miguel usasse o banheiro feminino, pois não aceitava que ele usasse o masculino. Em outra situação, quando já tinha os documentos retificados, chegou a ser chamado pelo RH da empresa para receber um presente de Dia da Mulher.
Para ele, empregadores e empresas que estejam realmente interessadas em acolher as pessoas LGBTQIAPN+ no mercado de trabalho precisam, antes de tudo, empregá-las. “O que está faltando é justamente a inclusão, porque se as pessoas não contratarem pessoas como nós, elas nunca vão saber como lidar com esse tipo de público. Então, a partir do momento em que você nega que a gente entre na empresa, você nunca vai saber como a gente trabalha, como fazemos para lidar com as outras pessoas e saber como as outras pessoas vão tratar a gente”, comenta Miguel.
Ele conta que se sente muito inseguro, por exemplo, ao fazer uma entrevista de emprego, pois não sabe se deve comunicar naquele momento que é transmasculino ou se é melhor fazer isso depois. “Muitas vezes acontece de eu não entrar falando [que sou trans], mas quando já estou na empresa e começo a ter um vínculo com a galera, vem aquele comentário de “nunca ia imaginar”. Mas não é para imaginar mesmo, porque eu já sou transicionado, já tenho minha cirurgia feita, já tenho barba. Não tem porque eu ser identificado como mulher”.
Ainda segundo a pesquisa Orgulho no Trabalho, realizada pelo LinkedIn, 45% das pessoas afirmaram nunca ter trabalhado com pessoas trans. Para Anabel, que trabalha com empregabilidade na Escola da Nuvem, “não é possível criar um ambiente de diversidade e inclusão sem que o público diverso esteja presente e participando desse processo”.
Como construir um ambiente seguro para as pessoas LGBTQIAPN+?
Segundo ela, o primeiro passo para tornar o mercado de trabalho mais inclusivo é fazer com que as pessoas tragam para a consciência os seus vieses inconscientes, pois, só assim, será possível mudar. “Muitas organizações fazem isso trazendo treinamentos e palestras sobre o assunto, principalmente para as lideranças. Depois, podemos pensar na construção de um ambiente com acessibilidade, que seja fisicamente e psicologicamente seguro para pessoas diversas. O desafio dessa etapa é que alguns pontos podem não ser tão evidentes”, explica.
“Por exemplo, alguns tipos de assédio e micro agressões, como comentários inapropriados e ‘piadas’ ofensivas que passam despercebidas devido a naturalização desse comportamento. Mesmo assim, elas impactam negativamente na vida de pessoas diversas. Algumas empresas criam códigos de conduta e canais de escuta para que o público diverso tenha garantia de sua segurança [e possa fazer relatos do que está acontecendo]”.
Segundo Anabel, é urgente que esteja nesse processo de inclusão a igualdade salarial e a promoção de iguais oportunidades de crescimento dentro das organizações. “Para isso, é importante que a liderança seja aliada à pauta da Diversidade e Inclusão. Também pode-se considerar a criação de grupos de afinidade para atuar em comitê e em frentes de inovação e estratégia para a empresa”, conclui, dizendo que, na verdade, isso tudo só terá efeito se a inclusão estiver integrada à estratégia da empresa como um todo, não só dentro de uma área específica ou como um projeto apartado.
Usando como exemplo a Escola da Nuvem, ela conta que “as empresas parceiras da organização, além de poderem contar com o apoio para preencher vagas a partir da contratação de um banco de talentos formado por ex-alunos, também recebem uma lista de entregas compostas por palestras e treinamentos voltados a temas de Diversidade e Inclusão. Isso vale para todos os públicos, desde o RH, passando pela liderança até todos os colaboradores. Assim, contribuímos para que o ambiente que pode, eventualmente, receber um de nossos ex-alunos, esteja cada vez mais preparado para receber pessoas diversas”, explica Anabel.
“Apesar da realidade, acredito num futuro otimista, visto a força que o assunto de Diversidade e Inclusão tem ganhado na sociedade e o movimento das empresas de perceberem os benefícios e ganhos de tratar o assunto de forma genuína. Aliás, dentre eles podemos considerar a inovação: pessoas com vivências diferentes possuem diferentes perspectivas sobre os mesmos assuntos, portanto as chances de se obter ideias inovadoras são muito maiores quando uma equipe é composta por pessoas diversas. Além disso, a sociedade no geral, que é formada por consumidores, principalmente os que fazem parte das gerações mais novas, têm considerado cada vez mais as pautas ESG no momento de tomarem decisões de compra, então empresas que são genuinamente engajadas com as pautas de Diversidade e Inclusão têm ganhado cada vez mais notoriedade no mercado. Vejo isso como uma oportunidade na área de tecnologia, visto que este é o mercado que tende a ser mais aberto à inovação”, finaliza Anabel.